O dia 18 de maio promove todos os anos amplas discussões acerca do combate ao abuso e à exploração de crianças e adolescentes no Brasil. A data foi assim designada pelo projeto de lei 9770/2000 da deputada Rita Camatta para lembrar o caso de abuso e assassinato da criança Araceli Crespo, de nove anos, em 1973, no Espírito Santo. A vítima foi alvo, não só das violências, que a levaram à morte, mas também do estado, que interferiu diretamente na resolução do crime.
Para debater a importância do tema e a construção de políticas públicas de proteção à criança e ao adolescente; Fábio Barros, presidente da Câmara de Paulista/PE convidou, no último sábado (16), especialistas da área para uma live no canal do Youtube. Os participantes foram Geraldo Nóbrega, professor de história, bacharel em direito e ex-conselheiro tutelar do Recife; Hugo Monteiro, doutor em educação e terapeuta de crianças, adolescentes e jovens; Sylvia Siqueira, negra, feminista, articuladora social e diretora da ONG Mirim Brasil.
No início da conversa, os participantes puderam remontar à história de Araceli, que originou a data de enfrentamento, e analisar as falhas dos diversos agentes em torno da vida da criança, desde a família ao estado. O contexto do acontecimento remonta ao período da Ditadura no Brasil, período prévio à Constituição Federal de 1988 e ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, mas os números de casos de violências nos dias atuais, apesar das diretrizes postas pelos direitos, continuam alarmantes.
Em 2019, dos 159 mil registros de violência sexual e abuso, feitos pelo Disque Direitos Humanos, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018. A violência sexual figura em 11% das denúncias que se referem a este grupo específico, o que corresponde a 17 mil ocorrências. Estima-se ainda que, que a exploração sexual afete 500 mil crianças e adolescentes por ano, de acordo levantamento do Instituto Liberta, a partir de estudos de organizações da sociedade civil e dados governamentais.
“O Brasil é um país que, embora tenha legislação e embora consiga discutir e no ano de 2000 tenha instituído o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, é ao mesmo tempo um país que tem um histórico de violência contra as crianças e contra os adolescentes e infelizmente, que eu percebo ser reflexo ainda de uma cultura de propriedade.”, disse o professor Hugo Monteiro, XXXX.
O cenário do Brasil diante do problema pode ser ainda mais preocupante com a pandemia do novo coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS), junto à Unicef, alertaram estados de todos os países do mundo para a violência contra crianças e adolescentes. Os órgãos previam que o número de casos teria um aumento considerável. Dados do Governo Federal já mostram a crescente nas denúncias a partir de meados do mês de março.
“A Unicef se preocupou com aquilo que qualquer pessoa que lida com violência sabe, que se o agressor e a vítima, que já vivem numa situação delicada diariamente, vão passar mais tempo juntos, significa que aquele que está do lado frágil ficará em situação ainda mais vulnerável”, comentou Fábio Barros.
Estima-se que cerca de 90% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes acontecem no ambiente familiar. Diante desse cenário de restrição social e sem aulas nas escolas, pode ser ainda mais difícil identificar quando estão sendo vitimizadas e assim, conseguir acionar o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), formado pela integração e a articulação entre o Estado, as famílias e a sociedade civil e os órgãos de execução.
A dificuldade de comunicação e verbalização, principalmente das crianças menores, que vivenciam situações de violência é um dos desafios para identificação e denúncia. Sylvia Siqueira elencou seis sinais observados, que podem auxiliar a família, mesmo no espaço da casa, a reconhecer possíveis problemas e procurar formas de dar apoio.
“Primeiro, olha para essa criança e percebe se mudou algo de tristeza e alegria no olhar e na forma de atuar; A segunda é se tem algo diferente no comportamento sexual dessa criança, se há algo inadequado para além da idade que ela tem; Terceiro: observa também algum disfunção fisiológica do organismo; Quarto: o distúrbio alimentar, comer de menos ou comer demais; O quinto, e isso é muito importante, é a baixa auto-estima, se ela se guarda, se ela se retrai, fisicamente você percebe no corpo da criança; A última são cicatrizes no corpo, isso acontece mais com adolescente, que é a mutilação corporal”, explicou Sylvia.
Após a suspeita a partir de algum desses sinais, a diretora da ONG Mirim Brasil ainda recomenda o processo de escuta atenta da criança, a partir de perguntas simples sobre o que pode ter acontecido. A abordagem calma é ainda essencial para entender os detalhes do caso e acolher a criança e adolescente da melhor forma. A partir da confirmação junto à vítima, a pessoa responsável deve procurar apoio junto à Rede de Proteção.
Unanimidade entre os convidados durante a discussão está a prioridade de ações preventivas ao abuso e exploração. O poder público, em especial no âmbito municipal, deve seguir a legislação que prevê atender a criança em todas as suas necessidades, através da prática de políticas públicas a fim de organizar e subsidiar o sistema de garantias para a proteção das crianças e adolescentes.
“O Estatuto da Criança e do Adolescente diz que os Conselhos de Direitos são órgãos deliberativos da política de atendimento. Então no que concerne a política de atendimento dos direitos da criança, o Conselho de Direitos delibera a política e o chefe do poder executivo, a executa, até porque isso atende o critério de prioridade absoluta prevista na Constituição. O que acontece muitas vezes é que os gestores se sentem donos do dinheiro público e não executores de políticas e aí os Conselhos de Direitos estão passando por um processo de desestruturação e por isso, não gozam de autonomia para a elaboração de políticas”, refletiu Geraldo Nóbrega.
Para finalizar, os participantes da discussão reforçaram os canais de denúncia e os órgãos de apoio à criança e ao adolescente. As denúncias podem ser feitas de forma anônima por meio do disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal. Os conselhos tutelares, as delegacias, o Ministério Público e as defensorias também podem ser acionados. Mesmo com a ausência das escolas durante a pandemia, professores ainda permanecem importantes caminhos para as denúncias, além de familiares e pessoas próximas de confiança das famílias.
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