A segurança pública é uma preocupação constante da população brasileira e um dos principais problemas do país. A pesquisa Ipsos, publicada no início do segundo semestre de 2019, mostrou que 47% dos brasileiros apontaram a violência como o principal problema do Brasil, ganhando da saúde e do desemprego.
Mesmo essa sendo uma questão constantemente debatida em certos ambientes, ainda existem dúvidas e muito senso comum a respeito do sistema brasileiro de segurança, as instituições policiais e os principais problemas que os envolvem.
Para debater esse assunto e trazer luz à questão de extremo interesse público, o pré-candidato a prefeito da cidade de Paulista/PE Fábio Barros promoveu conversa no seu canal do Youtube. O professor e coronel da Polícia Militar do Espírito Santo Júlio Cezar Costa foi o especialista convidado para falar sobre segurança pública de forma aprofundada.
Fábio, que também tem formação na área, direcionou o diálogo possibilitando a compreensão sobre a segurança pública e os tipos de políticas instituídas. Partindo da origem dos modelos de segurança pública no mundo, até o sistema adotado no Brasil no dia de hoje, os dois puderam fazer críticas e apontar possíveis soluções.
A partir da discussão, separamos os principais pontos sobre o tema. Pensando na necessidade de compreensão do assunto da forma mais simples e da importância da transmissão para uma maior quantidade de pessoas, utilizamos o formato de perguntas temáticas seguidas de respostas.
Tudo para preparar você para um assunto que vem logo em seguida, outro conteúdo construído também a partir do diálogo entre Fábio Barros e Júlio Cezar. Nele, dessa vez, serão abordados especificamente os problemas da segurança pública em Paulista/PE e estratégias de melhoria já comprovadas pela aplicação em outras cidades.
Mas antes, é preciso entender a raiz dos problemas. É provável que você já tenha tido dúvidas sobre a divisão da função das polícias no Brasil, por exemplo. É por isso que o conteúdo faz esse percurso didático, para que você entenda da melhor forma os motivos que levaram à crise da segurança pública no país e a melhor forma de reverter essa questão. Confira!
– Quais os modelos de segurança pública mais conhecidos?
– Júlio Cézar: Em 1756, pela primeira vez na história mundial se usa a expressão polícia para designar uma força que defendia os interesses do estado. Isso, segundo Bismael rodrigues, aconteceu na frança, mas quando vem a revolução francesa no final de 1789, com os princípios liberté, igualité, fraternité, a polícia que era invasiva, como disse a Rainha Vitória, tinha tomado uma força tão grande que nem a Revolução Francesa conseguiu demover a sociedade francesa daquele modelo de polícia.
O modelo foi firmado portanto. Três anos depois da revolução francesa, em 1792, são criadas duas partes desse modelo, o que a gente chama tecnicamente de modelo dicotômico ou modelo bipartido. Há uma polícia que investiga e outra que toma conta da rua e aí nós vamos correndo com a história. Três décadas depois, a Inglaterra cria uma modelo único, com base comunitária.
O modelo francês, além de ser bipartido e não comunitário, era arbitrário e autoritário e invasivo, com base num histórico com Napoleão.
– Fábio Barros: Já existiam esses dois modelos quando o Brasil estabeleceu a sua polícia. Nós começamos ainda no período do final do século quando se estabelece o que é a polícia a partir de uma polícia que se militariza e que tem um perfil de fazer o papel de polícia no estado, mas que ao mesmo tempo é integrante de forças expedicionárias, forças de confronto de guerras externas ao território brasileiro e até mesmo guerras civis.
– Como se deu o processo de criação das polícias no Brasil a partir desse modelo?
– Júlio Cézar: Desde a década de 80 para os dias atuais, entramos num processo irreversível de dizimação desse modelo, mas ele é muito resistente. Nasce como um modelo para reprimir e todo modelo repressivo acaba se firmando de pé pela repressão.
Em 10 de outubro de 1831, o então ministro da justiça Diogo Antônio Feijó resolveu autorizar que as províncias, que hoje são os estados, criassem as suas guardas municipais de permanência. A origem se deu nos municípios. Os permanentes eram homens que trabalhariam nas províncias para fazer a defesa da proteção política dos governos provinciais.
Durante 40 anos, de 1831 a 1871, nós vivemos um modelo militar de polícia que tinha como crime jogar capoeira, fugir como escravo, então tinha toda uma visão repressiva e aí vem a Guerra do Paraguai.
Na Guerra do Paraguai, o Brasil precisava de soldados para lutar, não existia exército montado naquele momento, então recorreram às guardas provinciais e ali criam-se os batalhões de voluntários da pátria. Vão para a guerra e em cinco anos quando voltam, voltam para ser policiais nos estados, para dar a proteção e defesa àquela sociedade. Isso se repetiu também na República, quando houve a ruptura com o Império.
No início do século, São Paulo e Minas Gerais tomam a decisão de militarizar as polícias e é a partir daí que começam a chamar de Polícia Militar. Em 1901, Getúlio vargas institui uma Constituição que durou só três anos, ela dá ao exército o controle da Polícia Militar pela primeira vez, haja visto que a PM de São Paulo era maior e mais bem armada do que o próprio exército e aí vem esse controle.
Fica claro depois de 103 anos que a polícia militar foi criada para o controle interno e não para a defesa da sociedade
Veio a constituição de 1946, repetiu o modelo, veio a de 1967, outorgada pelos militares, repetiu o modelo. Por meio de um decreto, ela ainda estendeu a atuação da PM, onde foi tirado de outras guardas que existiam no brasil e dado a exclusividade à Polícia Militar.
Nós chegamos no final do regime militar de 1964, uma ditadura se estabeleceu durante 21 anos, cercearam-se todos os direitos da cidadania. Depois disso, mudou a saúde, mudou a educação e por fim, na segurança, não mudou nada, reproduziu o mesmo modelo e que chegou agora à falência.
– Quais os problemas do modelo nos dias de hoje?
– Fábio Barros: Muitas vezes a gente não entende porque o Brasil tem esse modelo. Quem faz o trabalho ostensivo é a polícia militar, significa que se há uma confusão na rua, quem vai resolver é a Polícia Militar, se existe uma troca de tiros numa tentativa de assalto a banco, é a polícia militar.
Mas quem investiga o crime cometido? Aí é a Polícia Civil, então nós temos aqui a polícia que investiga e a polícia que faz o papel ostensivo, essa dicotomia, uma posição de duas frentes.
– Júlio Cezar: Temos o pior modelo possível, mas você não pode acabar de uma hora pra outra com uma força de 500 mil pessoas, entre homens e mulheres. É muito mais complicado. Então é preciso ter uma destinação para essa força que hoje está aí, que pode ser uma força interna. Tem que retomar o que o mundo civilizado fez, que é gerar, a partir do município, uma força comunitária.
O que me espanta como estudioso ainda é que, as guardas municipais, algumas delas, em afronta à Lei 13.022 estão montando verdadeiras PMs. É o mesmo estilo de prevenção e ostensividade, sem qualquer compromisso com o texto legal, e o mais difícil é convencer o prefeito que esse modelo não é legal.
– Como o problema da superpopulação carcerária está relacionada ao modelo de segurança pública falido?
– Júlio Cezar – São três presos para uma vaga hoje nos presídios. Chegamos a um quantitativo na ordem de 863 mil presos no Brasil. 48% dessas pessoas estão aprisionadas de forma ilegal, sem que a justiça tenha se manifestado e o restante está ali, a maioria, por pequenos delitos. Enquanto o mundo evoluiu para substituir os pequenos delitos por penas comunitárias, nós insistimos em produzir presos.
Nós criamos verdadeiras escolas do crime a partir de uma ação que o estado adota de retirar da rua qualquer tipo de pessoa que tenha cometido o menor dos delitos. Não tendo o ciclo completo, nem um sistema de justiça criminal funcionando 24 horas, a polícia tem que ter um depósito para deixar os presos porque eles produzem presos 24h por dia. Com isso, tem todo tipo de complicação, o que vai rebater no custo das prisões no Brasil.
Hoje custa cerca de 38 milhões uma penitenciária para ser feita, equipada e entregue, com 400 vagas. Como eu tenho um déficit hoje de 370 mil vagas no sistema, quantas penitenciárias eu preciso para sanar isso? Aí eu vou ficar na política do “enxuga gelo” e o do convencimento, eu tenho que reprimir para dizer a sociedade que eu estou fazendo alguma coisa.
– O que explica os altos números de homicídio no Brasil?
– Fábio Barros: Em 1980, o país apresentava um número total de assassinatos próximo a 9 mil em todo o território nacional, hoje nós temos uma média, desde 2016, que ultrapassa 60 mil pessoas. O que aconteceu nesses últimos 20 anos no nosso país?
– Júlio Cezar: A constituição de 1988 tratou da saúde, criou o Sistema Único de Saúde (SUS), tratou da educação e criou as Leis de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação, mas tratou da segurança e continuou a mesma coisa. Continua a anomalia da bipartição do círculo policial e uma incapacidade seletiva muito grande porque eu trabalho de modo seletivo, prendo quem eu quero, prendo a hora que eu quero e no lugar que eu quero, isso a gente chama de seletividade do controle, é só ver o censo das penitenciárias.
O último censo feito mostra que 97% dos presos brasileiros, segundo o DEPEN, 97% ganhava menos de um salário mínimo antes de entrar para o presídio. 48% da população é negra e embora sejam menos em termos percentuais, ocupam quase ¾ dos ambientes prisionais porque existe uma seletividade do controle.
Da mesma forma acontece com os homicídios. É uma realidade muito recortada no território, se mata em bairros da periferia. Morre na periferia, dificilmente você vê crimes como esses em bairros mais nobres.
– Fábio Barros: Mesmo com a pandemia, os dados já mostram que a média de homicídios se mantém. Em alguns casos, em alguns lugares, houve até mesmo um aumento e isso é uma coisa alarmante.
– Julio Cezar: No brasil, se só um estado brasileiro parasse de matar diminuiria muito o número de homicídios ao ano. Temos um estado do Brasil que mata muito, 30% das mortes do país é ocasionada pelas forças policiais. Com o exemplo do Rio de Janeiro, foram 1800 homicídios só no ano passado.
– Os policiais também são afetados por esse modelo?
– Júlio Cezar: Nos últimos 20 anos aconteceram 520 greves e micro greves no sistema policial brasileiro. Segundo Jorge da Silva, quando as polícias fazem greve é porque chegaram ao extremo.
– Fábio Barros: Então nós temos dois problemas: um modelo que não funciona na sua organização estrutural e um modelo que faz com que o trabalhador da segurança pública seja um sujeito insatisfeito. A greve é o resultado de uma insatisfação do trabalhador, seja por condição de trabalho seja por salário, seja por mil outras coisas, mas demonstra claramente que há um problema grave também que afeta o trabalhador nesse processo como um todo.
– Júlio Cezar: O modelo que está aí não funciona e nele, as instituições também estão fazendo morrer e o pior das coisas é que nós estamos sabendo que a polícia brasileira é uma das categorias mais estressadas do Brasil. Nós temos um nível de suicidio altíssimo. Isso é muito importante para uma política formulada ao ambiente nacional, a valorização, se pensar em mudar o modelo e mudar as instituições, mas mudando do homem para as instituições e não das instituições para o homem.
– Fábio Barros: Tem pessoas que podem entrar numa corporação, ver tudo errado pela prática, mas diante do modelo, diante das circunstâncias, diante das pressões que aquela pessoa é submetida, ela pode achar que aquilo é algo normal, mas aí ela adoece. Os policiais adoecem muito, o suicídio é altíssimo, o adoecimento no campo emocional, psicológico e psiquiátrico também é muito alto. Isso tudo demonstra que essas pessoas estão machucadas também por um sistema que não resolve.